O Futuro da Tradução na Era da Inteligência Artificial
Recentemente, chegou a minha atenção um vídeo de um youtuber, sugerindo aos seus seguidores que utilizassem o tão falado ChatGPT para fazer traduções e depois as venderem no website fiverr.com. Confesso que nem fiquei chocado. Já vi esse “filme” inúmeras vezes, mas fui, novamente, convidado a refletir sobre o futuro da tradução.
Com cada passo de evolução da tecnologia computacional, algumas pessoas acham que vão conseguir se livrar do tradutor. Primeiro vieram os softwares de tradução (um programa chamado Globalink vem à mente) – quase completamente esquecidos. Depois veio a era do Google Tradutor – que deixou alguns com a errônea sensação de que tradutores não são mais necessários e agora vem aí, a bola da vez, a Inteligência Artificial!
Primeiros Passos
Da mesma forma que o Google Tradutor tinha uma proposta, que, diga-se de passagem, não era a de substituir o tradutor, mas de servir como um facilitador de comunicação na Internet, a IA também tem a sua proposta. É uma proposta muito interessante e, ao mesmo tempo, complexa, pois tem por objetivo reproduzir ou mesmo suplantar a inteligência humana. Como disse, isso é a proposta, já que entre a proposta e a realidade, existe o enorme abismo imposto pelo que chamamos de “criatividade”.
A inteligência humana não é uma lâmina sem fio; ela serve a um propósito maior: o de resolver problemas e, para tanto, depende de inovação e ruptura. A simples capacidade da dita IA de regurgitar dados reconfigurados não se converte automaticamente em novas soluções. Mais do que uma inteligência artificial, o ChatGPT e seus primos algorítmicos são, no máximo, assistentes para uma inteligência humana, cuja capacidade de criar e solucionar problemas ainda está longe de ser superada.
Seres humanos são inteligentes porque reconhecem a complexidade das coisas e a existência de múltiplas possibilidades de resolução na maioria das situações. O ser humano enxerga os impasses e compreende que, com frequência, não existem respostas absolutas.
A experiência humana se forja exatamente na busca pelas melhores respostas. Isso também se reflete no espaço da linguagem e torna essencial o papel de um ser humano capaz de tomar decisões e fazer escolhas comunicacionais na hora de transpor uma mensagem de um código para outro. É sobre o tradutor humano que essa tarefa específica recai e é, por conta, da importância das suas decisões que o seu lugar deve estar assegurado no cenário do futuro da tradução – pelo menos por um bom tempo.
Caveat Emptor: o Interessado que se Cuide
Como mencionei, a inteligência artificial, no seu estágio atual, não pressupõe possibilidade de julgamento ou capacidade de decisão.
Ao responder às perguntas que lhe são feitas, o ChatGPT, estando certo ou errado, declama as suas respostas em tom categórico, professoral e potencialmente perigoso.
Esse perigo, todavia, não deverá ter impacto profundo sobre o futuro de tradução. Ao propor que pessoas que não saibam um idioma “façam” traduções para vender, o youtuber mencionado no início do meu texto pode induzir pessoas a cometerem atos que vão do antiético ao criminoso. Isso sem considerar que o ChatGPT possa, em um belo dia, reivindicar os méritos dessa suposta prestação de serviços.
É assustador que a ideia de Inteligência Artificial tenha ativado nesse indivíduo, e em tantos dos seus seguidores que não enxergaram nenhum absurdo na proposta, uma estupidez que não se sabe ser nova ou latente, natural ou, paradoxalmente, artificial. Talvez, a resposta seja outra, por completo. Talvez esse cidadão esteja pouco “se lixando” para o impacto do que prega. Afinal, quem se importa com as consequências para as pessoas que possam acreditar nas asneiras vendidas pelos mascates da internet e “tweeteiros” de plantão?
O fato é que nos últimos meses, os meios marqueteiros da internet só falam de ChatGPT, como se fosse a panaceia que tudo resolverá. Como vimos, até agora, a sua existência ainda não conseguiu solucionar os problemas da humanidade e a razão é simples. O ChatGPT não é verdadeiramente inteligente. Como aponta o Professor Scott Galloway, em entrevista recente a Anderson Cooper da CNN norte-americana, o algoritmo é incapaz de ser criativo, apenas reempacota conteúdo, com certa eloquência, é bem verdade! Aliás, creio ter encontrado a palavra que faltava.
Eloquência Artificial
O que temos no momento, é uma espécie de “eloquência artificial” que está sendo deliberadamente “vendida” como “inteligência artificial”. Tenhamos cautela com isso. As gigantes da tecnologia mundial têm muito investido nisso e vão fazer de tudo para inflar expectativas.
A experiência com o ChatGPT não é, de certa forma, diferente daquela que temos diante de políticos ou jogadores de futebol, quando usam palavras cujo significado desconhecem.
Em um experimento recente, tentando “conversar” com o algoritmo, descobri que os tradutores públicos brasileiros são subordinados a um suposto Conselho de Registro de Tradutores. O algoritmo fornece até uma sigla para o órgão. Entretanto, essa informação é absolutamente incorreta. Quem segue o meu website sabe que quem tem o papel de registrar e fiscalizar tradutores públicos no Brasil são as Juntas Comerciais dos Estados.
Tecnologia nova, mas nem tanto
Para quem é linguista, ChatGPT e tecnologias semelhantes não estão fazendo nada de novo. Nesse sentido, o futuro da tradução está conectado a avanços acadêmicos e científicos que já são explorados há bastante tempo e até mesmo empregados nas tecnologias utilizadas pelos tradutores profissionais, nas chamadas ferramentas de Tradução Assistida por Computador, ou ferramentas CAT.
Em linguística, a análise e consequente interpretação de dados oriundos da coleta de grandes amostras é conhecida como linguística de corpus. Essa é uma forma de pesquisa anterior ao surgimento de termos como big data e inteligência artificial em nosso cotidiano. O que é diferente agora é a simples atribuição de uma descomunal força de processamento computacional.
Esse poder de processamento permite a análise de volumes de dados anteriormente inimagináveis. Isso, todavia, para o linguista levanta questionamentos sobre como as informações estão distribuídas linguisticamente no modelo (ou corpus) e até mesmo sobre a possibilidade de existir um limite para o quanto de informação se consegue processar com resultados, de fato, úteis. Você pode estar pensando que essas preocupações, certamente, também devem ocupar as mentes dos desenvolvedores, certo? Como ter certeza? Além da obviedade de estarem subordinados a interesses comerciais em escalas sem precedente, pouco se sabe sobre as suas preocupações éticas.
Escravos de Jó
Mas o que isso importa? Isso importa e muito. A inteligência artificial só pode aprender dos modelos que tenha disponíveis. Sabemos que existe uma reconhecida disparidade entre a produção intelectual em língua inglesa e a produção intelectual em outras línguas. Assim, acredito poder existir uma superioridade de desempenho do algoritmo quando a língua utilizada é o inglês, em relação ao desempenho quando outras línguas são utilizadas.
Ainda que a IA recorresse às melhores informações disponíveis sobre um assunto, essas informações não são, imediata e necessariamente, conversíveis para outros idiomas. Esse tráfego de informação também passa, portanto, pelo filtro da tradução. E como saber se essa tradução é boa, fiel e útil? Voltamos ao problema da tradução para vender no fiverr.com e à questão do futuro da tradução como uma ferramenta cada vez mais valiosa para a equânime distribuição de conhecimento e acesso.
Se confirmarmos a hipótese do desequilíbrio informacional, devemos entender os riscos dessa suposta inteligência artificial. Ela pode representar uma ferramenta potencial de hegemonia a serviço dos países ricos e, primordialmente, dos Estados Unidos, já que detém a grande fatia dessas tecnologias.
E o Futuro da Tradução?
O dia chegará em que teremos a capacidade com a qual agora sonhamos, mas esse dia ainda não chegou. Não estamos lá e, enquanto isso, não devemos menosprezar a importância do trabalho e dos profissionais que nos levarão até lá. Não é porque um marqueteiro de Internet quer ganhar dinheiro “ensinando” como ganhar dinheiro fácil que devemos suspender nosso julgamento diante de convenientes mentiras.
Será a chamada IA útil? Potencialmente, sim, e pode se tornar uma ferramenta valiosa no arsenal dos seres pensantes. Por outro lado, ela parece exercer grande poder de sedução entre mentes rasas. Exatamente aí, reside um risco potencial de que o mundo passe a ser inundado, ainda mais, por torrentes de conteúdo que nada agregam e que, se voltarem a alimentar os modelos computacionais, podem potencialmente diluir a tecnologia.
Sobre o impacto disso tudo sobre o futuro da tradução e o ofício dos verdadeiros tradutores, vem-me à mente o filme “A Chegada” (Arrival, 2016 – Paramount Pictures). No filme, a terra é visitada por seres extraterrestres e o roteiro especula sobre o que seriam, em termos bastante verossímeis, as primeiras horas desse contato. No filme, assim como muito provavelmente ocorreria na realidade, além de militares com armas nucleares, dois cientistas são imediatamente trazidos para lidar com a situação. Os cientistas são um físico teórico (Jeremy Renner) e uma linguista (Amy Adams). Pense nisso.
ChatGPT deve ser visto pelo que é: um modelo essencialmente linguístico e não como uma mente brilhante. Sobre ser valioso não resta dúvida, mas devemos nos perguntar para quem.
Quando precisar traduzir documentos, confie em nosso trabalho!
Rev. 20230215a